Cultura de inovação na saúde: realmente todos temos?

Cultura de inovação na saúde

Cultura de Inovação. Pode parecer estranho pensar neste tema, o qual parece estar presente em nosso cotidiano, seja como  indivíduos ou como profissionais. Afinal, o Brasil é reconhecido como um celeiro de inovadores. Porém, será mesmo que a cultura da inovação está presente em nosso DNA?

Neste sentido, vamos partir do princípio. O que é cultura? Podemos dizer que são os comportamentos, os costumes, a forma de se reconhecer, enquanto presença que participa de um meio.

Além disso, temos a inovação, que dentre tantos significados, podemos refletir como tornar algo diferente. Assim, pode significar algo como modificar, criar ou transformar alguma coisa para facilitar o processo ou o seu resultado final.

Nesta lógica, você concorda em pensar a cultura de inovação como um processo contínuo de alterar modelos mentais para obter uma melhoria significativa em qualquer desfecho?

Cultura de inovação na saúde: apenas para os grandes players?

Recentemente, Scott Galloway, prof. NYU Stern, confessou:

Scott Galloway - cultura de inovação

Se eu fosse um jovem abrindo um negócio, eu escolheria AI + Healthcare como segmento para empreender.

Scott Galloway

Prof. da New York University Stern School of Business

Ao compreender este incentivo do prof. Scott, percebe-se que há algo de inovador atualmente, que é a AI (Inteligência Artificial). Esta pode ser conduzida por quem não tem experiência e muitas vezes não está consolidado no mercado.

Também, vale frisar a outra sugestão: healthcare, ou seja, empresas que têm sua atuação para a área da saúde.

Não é segredo que, com o advento da COVID-19, abriu-se um campo vasto para projetos até então engavetados para a área da saúde começassem a soar interessantes aos ouvidos dos investidores.

Todavia, vamos retornar à pergunta original: quem pode ter cultura de inovação na saúde?

Talvez, seja possível dizer, com alguma segurança: os que têm audácia e liderança para desbravar locais hostis e continuar a construir um legado para os que virão.

No setor da saúde, é possível construir uma cultura de inovação?

Como já exposto acima, a cultura da inovação vai muito além da obtenção de infraestrutura de tecnologia. Não obstante, mesmo a tecnologia não se pode limitar apenas à aquisição de hardware e software.

Por um lado, é sabido que o nicho da saúde é bastante conservador. Todavia, há inúmeros cases, seja de organizações de grande porte ou de pequeno, que demonstram como este nicho está pulsando e mesmo que de maneira tímida ou empírica, construindo um “piso”, ou mesmo um embrião, de uma cultura de inovação.

Para conversar sobre esta visão de cultura de inovação, tecnologia, startups, convidamos o Me. Adriano Bello, neste quadro do Fala Especialista.

Fala especialista: Cultura de Inovação

CONDUCERE: A tecnologia avançou muito nos últimos anos. Não há como negar que a era digital acelerou e muito as relações sociais e comerciais. Afinal, ao imaginarmos que as revoluções industriais 1.0, 2.0 e 3.0, demoraram em média um século para acontecer (1784, 1870 e 1969, respectivamente) e que já na década de 80 iniciava-se os embriões da era computacional que impulsionaria o desenvolvimento da internet (1990) e por consequência as TICs (Tecnologias da Informação e Comunicação), nos anos 2000. Inclusive a era digital pode ser datada como tendo início já em 2010, ou seja, é uma timeline curtíssima para amparar tanta inovação!

Na sua opinião, o mercado conseguiu acompanhar estas transformações na mesma velocidade e as startups, que são empresas nascidas nesta nova visão de relacionamento, estão conseguindo entender e entregar aquilo que a sociedade realmente precisa? Há alguns setores mais desenvolvidos que outros? Caso sim, qual é a diferença destes em relação aos mais “conservadores”. Como você enxerga o setor da saúde e bem-estar nesta seara, atualmente.

A sociedade sempre demanda esforços de adaptação às transformações do progresso, os quais variam conforme o tamanho do salto tecnológico em questão. Se considerarmos, por exemplo, os avanços da inteligência artificial, eles deverão ter repercussões cada vez mais significativas na maneira como os seres humanos se relacionam com a tecnologia, no modo como as pessoas aprendem, na configuração das organizações, na forma de trabalho, na oferta de empregos, e muito mais.

É nesse cenário de rápidas mudanças que as startups estão inseridas. Mais do que isso, elas são agentes importantes das transformações em curso. 

Contudo, na sua opinião, esse mercado em transformação é somente para quem tem acesso a grandes investimentos?

Em um passado recente, possuir uma área de pesquisa e desenvolvimento era característica apenas das grandes organizações, pois somente elas tinham a capacidade de investir, assim como o fôlego necessário para suportar os riscos envolvidos. Nas últimas décadas, no entanto, as startups assumiram o papel principal na geração de novas tecnologias e passaram a atrair boa parte dos investimentos. Todos saíram ganhando, pois trabalhar com as startups é vantajoso para as empresas. Ao invés de investir pesadamente em áreas próprias de pesquisa, elas passaram a formar redes abertas de inovação em conjunto com as startups. 

A criatividade coletiva destas redes oferece maiores possibilidades de solução para os problemas de negócios das organizações, ao mesmo tempo em que proporciona oportunidades de negócios para os empreendedores. O lado negativo para as startups é que elas acabaram ficando os riscos e incertezas do desenvolvimento e, portanto, nem todas sobrevivem. Pelo contrário, grande parte delas acaba ficando pelo caminho.

Todavia, como as startups podem ter sucesso em seus empreendimentos?

Neste contexto, as startups mais bem-sucedidas são justamente aquelas que conseguem identificar com clareza as oportunidades e trazer soluções eficientes em termos tecnológicos e de custo-benefício. É verdade que as startups têm se destacado mais em alguns setores, tais como varejo e logística, finanças, educação e também saúde. 

Não creio que estes setores sejam mais ou menos conservadores. Mas, de fato, a criatividade das startups e sua capacidade de escalar trouxeram dinamismo a estes mercados, justamente nas áreas em que as empresas tradicionais eram mais lentas. 

As fintechs, apenas para citar um exemplo, reduziram brutalmente o tempo e a burocracia para a abertura de contas, e com custo zero para os correntistas, o que permitiu que elas conquistassem o mercado rapidamente.

O setor da saúde também pode e deve se beneficiar mais das startups. Durante a pandemia de Covid-19, viu-se um verdadeiro “boom” de investimentos nas chamadas healthtechs. Elas foram fundamentais em alguns segmentos específicos devido a sua agilidade em produzir soluções. Houve grandes avanços, por exemplo, em tecnologias de virtual care e home care. Produtos voltados à saúde mental e ao bem-estar também estão em alta e são fundamentais para a sociedade moderna. 

Por outro lado, o processo de transformação digital da saúde no Brasil está apenas no início. Eu acredito que as oportunidades para as startups mais inovadoras são enormes.

CONDUCERE: Em 2020, o colunista da NeoFeed, Alex Lazarow, já trazia que os investidores deveriam parar de olhar para as startups unicórnio (termo cunhado por Aileen Lee), ou seja, aquelas que têm a capacidade de rapidamente (crescimento exponencial) tornarem-se bilionárias, antes mesmo de abrirem seu capital na bolsa de valores, como a Uber, iFood, Gympass. Segundo Lazarow, os investidores deveriam passar a olhar para as startups camelos, que são mais reais, resilientes e sustentáveis. Para ler este artigo, acesse aqui.

Este tema voltou a ser abordado nos anos seguintes pela Forbes, CNN, Você S.A., StartSe e muitos outros canais que têm o seu olhar para o mundo econômico.

Você acredita que as startups devem começar a rever seu posicionamento de mercado, incorporando um pouco do modelo conservador das grandes corporações ou poderemos ter um novo modelo em breve, visto que esta forma ágil de negócios já está consolidada em nosso mercado?

É verdade que as startups experimentaram um extenso período de prosperidade global, marcado por um contexto macroeconômico relativamente estável, uma disponibilidade abundante de recursos e uma notável tolerância aos riscos por parte dos investidores. O novo cenário global, contudo, é totalmente diferente. As incertezas, os conflitos geopolíticos e a inflação alta fazem com que o custo do capital fique maior, a capacidade de investimentos se reduza e, portanto, as exigências financeiras sobre as empresas também aumentem. Portanto, de modo oposto ao que vinha ocorrendo até o momento, as startups precisarão intensificar a otimização de suas operações, minimizar as incertezas e oferecer maior previsibilidade aos investidores a longo prazo.

Cultura de inovação nas organizações de saúde
Crédito: Freepik.com

Sob a perspectiva dos níveis de investimento, há divergência entre os analistas. Alguns afirmam que os aportes retornarão aos patamares anteriores, enquanto outros sustentam que nunca mais serão os mesmos. Fato é que o crescimento rápido e descolado dos lucros, o que levou diversas startups a se tornarem unicórnios, vem sendo criteriosamente reavaliado. Planejamento e governança se tornaram imprescindíveis. É neste sentido que as denominadas startups camelos têm conquistado maior atenção dos fundos de capital, uma vez que conseguem se expandir sem comprometer a agilidade, a inovação e, sobretudo, os resultados.

CONDUCERE: No mercado brasileiro, tem-se ouvido continuamente de pessoas ligadas às startups: a empresa não tem um produto consolidado, tem investidores...ou ainda, o objetivo maior é aumentar o valor de mercado e poder vender, não é o produto que importa, mas somente a possibilidade de escalar. Certamente, não é a visão de todos os empreendedores que anseiam que suas ideias possam se transformar em um negócio lucrativo e com um propósito transformador para a sociedade. Todavia, não há como deixar de mencionar a reportagem do New York Times, trazida pela Folha de SP (De unicórnios a Zumbis), onde demonstra uma “falência” nas startups dos EUA, em razão dos investidores estarem “cansados de promessas” e quererem colocar o seu capital de risco em empresas que consigam comprovar sua solvência e lucratividade. Por outro lado, as empresas que atuam com IA (inteligência artificial) são as “queridinhas da vez”.

Neste sentido, as healthtechs (empresas de tecnologia da área da saúde) devem estar muito otimistas, visto que, em razão da alta necessidade de gerenciamento de dados, a incorporação da IA em seus produtos/soluções é quase que uma exigência natural. Qual é a sua visão em relação às healthtechs?
Você tem percebido essa movimentação favorável para as healthtechs e um entusiasmo maior no setor, ou esta “ressaca” que está no Vale do Silício ainda não chegou por aqui?

Penso que essa ressaca é global. Como mencionei anteriormente, os investimentos estão mais escassos em todo o mundo e as startups devem procurar oportunidades de crescimento associadas a riscos menores e previsibilidade de resultados.

Especificamente sobre as healthtechs, pode-se dizer que elas sempre cresceram de maneira um pouco mais lenta em relação aos demais setores, pois a área da saúde é bastante regulada, demanda investimentos significativos e requer tempos longos de maturação. Embora isso tudo represente um desafio, acabou fortalecendo as healthtechs e as tornando mais aptas para enfrentar o novo contexto de investimentos do qual estamos falando.

Neste sentido, alguns analistas de mercado destacam que as healthtechs estão entre as principais tendências de inovação para a próxima década. A inteligência artificial e a digitalização dos processos de atendimento e gestão não serão apenas diferenciais competitivos para hospitais, instituições de saúde e empresas do setor, mas condições indispensáveis para a sua sobrevivência.

CONDUCERE: Os dados são o novo petróleo e há uma nova guerra fria. Essas duas afirmações vêm influenciando todo o cenário mundial e construindo uma nova “rota da seda”. O Brasil é um berço de inovação. Até parece estar no DNA de cada brasileiro encontrar maneiras de resolver problemas que lhe são apresentados. Infelizmente, nossas grandes mentes acabam sendo atraídas para países mais desenvolvidos e toda capacidade de transformação acaba sendo exportada, antes mesmo de se ter um case nacional.

Você tem captado startups dos mais diversos países, além de já ter vivido intensamente a incorporação de empresas multinacionais em nosso solo. Parece-lhe que estamos em um momento fértil de investimentos e oportunidades ou mesmo com essa grandiosidade que é o Brasil, ainda são exceções em alguns setores da economia e há mais retórica do que movimentos em prol da inovação e das startups em nosso país?

A fuga de talentos, realmente, é um problema sério para o Brasil. O nosso povo é muito criativo e empreendedor. Existem culturas, tais como a alemã, que têm uma forte ênfase no planejamento. Outras, como a americana, são mais voltadas para a execução. Já a cultura brasileira, por sua vez, se encontra no meio do espectro. Nós temos, ao mesmo tempo, boa capacidade de planejar e de executar, além de notável flexibilidade e facilidade de adaptação. As universidades e empresas estrangeiras sabem disso. Como possuem mais estrutura, recursos e poder de investimento, acabam atraindo alguns dos nossos melhores cérebros.

Porém, é possível termos uma relação causal de porque perdemos tantos talentos?

Em 2023, o Brasil ocupou a 49ª posição entre os 132 países listados no índice global de inovação da WIPO (World Intellectual Property Organization). Apesar do avanço de dez posições em relação ao ano anterior, continuamos ocupando uma região intermediária do ranking e ainda há muito o que fazer. Temos diversos problemas de infraestrutura, sérias deficiências educacionais, poucos incentivos para a formação de mestres e doutores, incertezas jurídicas e enorme complexidade para empreender. Essa é uma das razões pelas quais nossos talentos acabam deixando o país.

Outra consequência disso tudo é a baixa quantidade de deep techs no Brasil. Nossas startups são muito boas em resolver problemas de negócios, mas, em geral, não dispõem das condições necessárias para se envolver no desenvolvimento de tecnologias científicas. Trata-se de uma lacuna significativa em nosso ecossistema.

Apesar disso tudo, como afirmei na pergunta anterior, sou otimista com relação ao futuro das healthtechs brasileiras. Elas são criativas, resilientes e a potencial do setor é muito positivo. Pessoalmente, concordo com os analistas que dizem que as tecnologias da saúde estão entre as principais tendências de inovação para as startups nos próximos anos. Para que isso se torne realidade, porém, é importante que possamos fortalecer o ecossistema como um todo, trabalhar em parceria e garantir uma boa governança.

Quais conselhos e sugestões poderia deixar para os que lerão estas linhas sobre as oportunidades para empresas, em especial as startups, que têm suas soluções voltadas para o segmento da saúde e do bem-estar?

Se você perguntar para os empreendedores sobre o talento que eles consideram mais importante para o sucesso dos negócios, uma grande parte deles, senão a maior, vai dizer que é a persistência.

Embora os desafios sejam grandes, o potencial dos negócios é ainda maior. Sobre o setor de saúde, já mencionamos a demanda por soluções de virtual care, de home care, de saúde mental e de bem-estar. Temos healthtechs brasileiras que estão sendo muito bem-sucedidas, que estão crescendo de maneira consistente, abrindo o capital no exterior e vislumbrando futuros brilhantes. Some-se a isso o fato de que o Brasil é um país que está envelhecendo. As tecnologias que endereçarem a população 65+ terão cada vez mais demanda daqui para frente. Trata-se de um mar de oportunidades.

Enfim, sou otimista e, portanto, quero deixar um conselho encorajador. Sigam sempre em frente. Prestem atenção ao que está acontecendo em outros países, participem de eventos, atualizem-se sobre as principais tendências e novas tecnologias que estão surgindo. Coloquem suas soluções no mercado, testem a aceitação dos seus produtos e estejam sempre atentos às regulamentações. Por fim, saibam que vocês não estão sozinhos, existem diversos ecossistemas e comunidades de inovação dos quais vocês podem fazer parte. Busquem conhecimento especializado, peçam aconselhamento e façam parcerias. Juntos podemos fazer sempre mais.

Boa sorte!

Adriano Bello - Diretor associado da Conducere

Adriano Bello 

Founder da AB Consulting. Diretor Associado Conducere Intelligent Health.

Mestre em administração de empresas pela FGV EAESP. É pesquisador dos temas de internacionalização de empresas e difusão de novas tecnologias.